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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sobrevivendo às internações hospitalares 5

Hoje temos a participação mais que especial da querida amiga e irmã Ana Paula de Lisbôa

Ana Lisbôa 5 de agosto de 2016 06:27

Seguindo seus exemplos, como sempre, resolvi infartar também... Minhas experiências de CTI são inesquecíveis. Em um deles fiquei aguardando a medicação noturna que não chegava nunca... diante do meu quadro e com medo de irritar o corpo de enfermagem fiquei quieta observando um box a minha frente onde fecharam as cortinas e a única médica do plantão se esfalfava para salvar a criatura no leito escondifo pelas cortinas. Foi quando o estalo se deu!! Resolvi que iria gritar em plenos pulmões exigindo minha medicação!!!

Escândalo em andamento, os auxiliares de enfermagem afirmavam que já haviam me dado a medicação e eu aos berros dizia que não, que estavam mentindo... A doutora já totalmente descabelada saiu do box tendo feito o que podia pela paciente que lá estava, veio para meu leito disposta a defender sua equipe e eu disse para ela que calasse a boca porque eu havia visto o momento em que derrubaram meus comprimidos no chão que foi imediatamente varrido e que os remédio não tinham sido ministrados em mim porque estavam no lixo! A médica, acreditando estar resolvendo o problema mandou que trouxessem minha medicação novamente.

A enfermeira chegou com os comprimidos e eu perguntei para ela se todos estavam alí... ela disse que sim e eu disse que não. Ela afirmava que sim e eu dizia que ela mentia porque não estavam todos lá. A médica tomou ares de autoridade defendendo a equipe e engrossou comigo. Mandei que ela calasse a boca e que não defendesse assim pessoas que ela não conhecia e que agindo daquela forma ela jogaria os anos de estudo e seu diploma junto com meus remédios... no lixo. Só então fiz a pergunta que provaria à médica da certeza que eu tinha... Me virei para enfermeira e disse que ela estava mentindo porque se toda a medicação estivesse alí teria que estar também o meu rivotril em gotas! A enfermeira arregalou os olhos! Então concluí. O meu rivotril foi dado para aquela senhora que vocês deixaram desacordada naquele box de cortinas fechadas! Vocês trocaram a medicação e se a idosa falecer por isso e dou queixa na polícia e a doutoura vai perder o diploma!!!!


Corre, corre no CTI, recebi minha medicação completa e salvei a velha... Plantões noturnos em CTI parecem uma festa, muito barulho e pouca responsabilidade.

Solicitei a papelada para que eu assinasse a responsabilidade de sair do CTI e voltar para casa. A doutora com muito medo disse que eu não podia fazer aquilo porque estava programado um cateterismo para mim. Eu respondi que em meu coração ninguém naquela espelunca poria a mão. Assinei, meu marido veio me buscar e fui procurar outro hospital... Aff!

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Sobrevivendo às internações hospitalares 4

Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2014

Ao querido Doutor xxx e demais membros da Direção do Hospital xxx

Me dirijo aos senhores com a melhor intenção possível, na condição de paciente que já usufruiu dos serviços médico-hospitalares desta instituição e que pretende continuar usufruindo.

Já estive internada, em 2009, para a realização de uma alcoolização septal. Foi a primeira realizada pela equipe, neste Hospital, e o atendimento da equipe médica foi absolutamente espetacular.

O mesmo posso dizer da internação a que fui submetida na semana passada, com o atendimento impecável do Dr. xxx e da Dra. xxx.

A questão que venho apresentar é exatamente o enorme fosso que existe entre o atendimento que recebemos da equipe médica e o que recebemos da equipe de enfermagem.

Já em 2009, fiquei assustadíssima com o ambiente do CTI – Cárdio: extremamente barulhento, desrespeitoso e incompetente.

Depois que fui para o quarto, a insegurança foi grande, com enfermeiros/as e técnicos/as sem a menor habilidade para tratar dos pacientes.

Agora, em 2014, percebi um esforço extraordinário da equipe de enfermagem, da enfermaria, resultando uma melhora bastante positiva, embora ainda longe de ser ótima. Começa a ficar quase boa.

Quanto à equipe do CTI, continua o mesmo despropósito. Os enfermeiros-chefes só trabalham achincalhando os técnicos. É puro assédio moral!

O Sr. xxx e a Sra. xxx são completamente inadequados para estarem à frente de equipes sob seu comando. São desrespeitosos entre eles e com os pacientes – que, na maioria das vezes, se encontram em estado lastimável, e sem condição de reação -. Essas pessoas citadas colocam apelidos nos pacientes. O Sr. que se encontrava no box ao lado do meu, era chamado de brucutu, por ser um homem grande e gordo... mais tarde, já na enfermaria, esse senhor me disse que nunca ficou tão constrangido na vida, e que nunca havia se sentido tão desrespeitado.


Enfim, o CTI/Cárdio é um espaço em que se conversam sobre todos os assuntos pessoais, combinam-se churrascos e baladas, maridos, namorados, novelas e... esquecem literalmente os pacientes. Não há concentração mínima sobre os procedimentos que estão sendo realizados. O pouco que é feito, é feito no 'piloto automático' e sem foco algum.

Os pacientes que ficam nos boxes em frente ao balcão da enfermagem, ainda são vistos. Os que ficam nos boxes mais afastados, ficam horas sem atendimento. Nada do que é pedido é atendido, com um mínimo de dignidade com o paciente. Os que querem urinar ou evacuar têm vergonha de pedir, para não dar trabalho à equipe... Os que não conseguem pedir ficam horas sujos e ainda levam broncas, quando são 'descobertos'.

Entre o bate papo sempre alterado e, em tom de voz bem alto, vez por outra, algum desavisado toca o interfone, atrás de alguma informação. Dentro do CTI, as pessoas têm raiva de terem que atender a essas chamadas e respondem de maneira extremamente grosseira, debochando e xingando os infelizes que ousaram pedir alguma informação, através de um equipamento que está ali exatamente para isso.

A falta de atenção generalizada é assustadora, porque, mais de uma vez, me deram medicação que não era para mim e só consegui impedir de tomar porque estava o tempo todo lúcida e atenta. Sabemos que, num CTI, essa é uma situação atípica. A maior parte dos pacientes não têm condições de zelar por si mesmos.

Quando tive alta para enfermaria foi um alívio! Da mesma maneira que foi um pesadelo, quando eu soube que teria que voltar para o CTI, para realizar um exame mais sofisticado. Não deu outra. Quando cheguei para o tal exame, a enfermeira chefe estava brigando, berrando, xingando e achincalhando com as técnicas, que começaram a cuidar de mim, aos prantos e trêmulas e a enfermeira entrou no box em que eu me encontrava e continuou, aos berros a destratar as técnicas e ignorando a minha presença. É evidente que, num primeiro momento, os eletrodos foram colocados em mim de maneira totalmente equivocada, e tiveram que refazer a tarefa. E eu ainda tive que ir orientando a técnica, e lembrando a ela o que deveria fazer, porque ela estava desequilibrada por conta da discussão.

Sei que esse não é o clima esperado dentro de um CTI. Esse tipo de atitude deixa os pacientes mais estressados do que já estão.

A falta de cuidado começa no primeiro atendimento, para a colocação do soro. Fragilizada como qualquer pessoa na mesma situação que eu, comecei a achar que a culpa era minha, afinal, eu é que tenho fragilidade capilar... e isso já é motivo de deboche e de impaciência.

É muito interessante como a gente se sente acuada diante do aparato médico-hospitalar. Parece que aquilo tudo vai poder nos engolir a qualquer momento, principalmente se não tivermos um bom comportamento...

A questão do bom comportamento fica logo clara para quem chega, só em ouvir os comentários do pessoal da enfermagem a respeito dos pacientes. Logo, logo a gente percebe que o melhor é ficar bem comportadinha...

A atitude pouco adequada de alguns funcionários, ora dando gargalhadas, ora brigando entre si por causa de horários e ‘quem vai cobrir quem, no dia tal’, alguns se xingando, é o retrato rotineiro dentro do CTI.


Por que toda a equipe é nervosa e estressada? Por que as pessoas não são mais calmas, e falam mais baixo?

Os médicos plantonistas, coitados, são ‘engolidos’ pelo clima e parecem até ter medo de ‘exigirem’ um mínimo de educação e comportamento adequado. Fico triste, porque me pareceram todos ainda estudantes e, é lamentável, que eles encarem esse ambiente como sendo ‘normal’ e não façam nada para modificá-lo. Aliás, pelo clima de fofoca reinante, eles devem ter medo mesmo de serem ‘queimados’ pelos chefes da enfermagem.

Presenciei mais uma cena grotesca quando, no sábado à noite, apareceu o médico plantonista da emergência, procurando o plantonista do CTI, porque ele queria tirar uma dúvida com o colega, sobre uma pessoa que ele estava atendendo lá na emergência. Como o plantonista do CTI não se encontrava no local, ele deixou um recado com o Sr. xxx para que, por favor, assim que o colega voltasse, fosse pedido que entrasse em contato, porque ele estava precisando de ajuda. O rapaz mal virou as costas e o enfermeiro diz: “É ruim que vou dar recado... vai morrer esperando... quem manda não saber as coisas...”

E é nesse clima de total descompromisso com o atendimento dos pacientes que segue a rotina do CTI/Cárdio.

Cheguei ao quarto, com uma técnica da UTI e não havia ninguém da enfermagem do andar para me receber no quarto. Me ajeitei como pude e, mais de uma hora depois, é que apareceu a enfermeira para me receber. Por sinal, muito simpática.

Como no CTI, é lógico que mais de uma vez a medicação veio errada e eu tive que intervir.

Concluo que é absolutamente necessário que o paciente esteja lúcido e atento 24h por dia. Não posso imaginar o que pode estar ocorrendo agora com as pessoas que estão inconscientes, ou tão-somente, grogues, por conta dos medicamentos.

Caros doutores, em hipótese alguma quero magoar ou ofender as pessoas envolvidas, mas senti-me da obrigação de relatar para vocês a quantas andam os procedimentos internos do Hospital. Fiquei bastante assustada e insegura com a perspectiva de ter que retornar em outro momento, o que é bastante provável, dada a minha condição de saúde.

Creio que um departamento de pessoal, que promova cursos de capacitação/atualização permanente para a equipe dentre outras coisas, pode ser um bom caminho. É extremamente importante que as prescrições sejam feitas de maneira claríssima pelos médicos! O sistema de comunicação interno pode e deve ser aperfeiçoado, como, por exemplo, quanto ao atendimento dos exames que são solicitados pelos médicos e que levam dias para serem realizados.

Um grande e fraterno abraço,

Sobrevivendo às internações hospitalares 3

Depois de ser submetida a uma alcoolização septal que, literalmente, me provocou um infarto em duas artérias (é o que eu acho...), para que eu pudesse ficar quase boa, evidentemente, fui para o CTI coronariano.


Eu, embora tranquila com relação ao sucesso do procedimento, e absolutamente confiante no meu médico e em toda a equipe, estava bastante fragilizada e preocupada, uma vez que pouquíssimas pessoas já haviam se submetido à tal alcoolização, nos termos em que o meu coração se apresentava. Não foi à toa que meu caso fez parte de vários estudos e apresentações em congressos de Medicina.

Meu médico já havia me avisado que quando a anestesia passasse, eu iria sentir um peso muito forte no peito, mas que era normal, era a sensação do infarto. Tudo correu como ele disse e estava lá do meu lado.

Já no CTI, havia uma TV em cada “baia” - continuo sem saber o motivo – na minha, estava passando um emocionante jogo de futebol, do São Paulo com a Ponte Preta, que, evidentemente, muito colaborou para a minha recuperação. Assisti até o final, quando entrou um rapaz da equipe de enfermagem e falou: “vou desligar, tá? Já são 23h e tá na hora de você descansar”... Concordei plenamente, afinal, eu não havia pedido para assistir coisa alguma, e já sabendo que era o momento em que eu deveria ficar mais atenta.

Às cinco da manhã, naquele velho esquema de tortura, para deixar os pacientes mais infelizes e tendo certeza de quem é que manda ali... chegou um dos rapazes da equipe de enfermagem para fazer aquela rotina toda, inclusive a minha higiene.

Ah, outra coisa bem legal, também, é aquele banho de gato que eles dão na gente e que quase nos mata de frio, porque a água está sempre mais ou menos morninha, e o CTI ou a UTI estão sempre com os aparelhos de ar condicionado no máximo, como tem que ser mesmo, por causa da aparelhagem.

E eis que ele se depara com as minhas pernas abertas, retas e amarradas, impossibilitando qualquer movimento, e com uma espécie de “tijolo” de espuma, fortemente contraído sobre cada virilha. É um procedimento normal, utilizado para ajudar a estancar o sangue da veia (femural) utilizada durante o procedimento e prevenir quanto a hemorragias. Quer dizer, é normal em uma das virilhas, mas eu estava naquela situação nas duas... E então, o técnico de enfermagem chega, levanta o meu lençol e dá um berro: “Gente!!! Ela está presa nas duas pernas! Nunca vi isso!!! Gente, vem ver!”, e imediatamente chegaram os colegas e todos ficaram escandalizados com a situação. Foi quando o rapaz me perguntou: “Querida, como é que você vai voltar a andar???”. Eu respondi, com muita humildade (que é essencial nesses casos), “Ué, achei que você é que iria me dizer...”


E assim correram os dias, naquele ambiente escandalosamente barulhento – por causa das pessoas que lá trabalham, que só se comunicam aos berros e às gargalhadas, de maneira bastante apropriada para um CTI.

Finalmente, fui para o quarto. Era uma enfermaria grande, com quatro camas, mas apenas uma estava ocupada por outra paciente. O maqueiro e um técnico me deixaram lá na cama.

Como sempre, não apareceu ninguém para me admitir. É um padrão de conduta, que é o/a enfermeiro/a responsável pelo andar, venha receber o 'novo' paciente. Mas, nada. Passados uns 30 minutos, a minha companheira de quarto se vira na cama e diz: “É ruim de aparecer alguém por aqui... a gente morre pendurada na campanhia e ninguém aparece...”.

Tive sorte, depois de uma hora e meia, mais ou menos, apareceu uma enfermeira - totalmente por acaso - que ficou muito espantada com a minha presença no quarto.
Tive azar, porque precisei que mudassem a veia que estava ligada ao soro e aos medicamentos, e mais uma vez, a tiradora de sangue fica muito aborrecida comigo, por causa das minhas péssimas veias (essa já um clássico).

E aí começa-se um novo momento, em que é fundamental cuidarmos de nós mesmos, caso queriramos nos manter vivos. Tudo o que pode dar errado, dará, caso você não esteja tomando conta de você mesmo.

Foi a alimentação que veio com ingrediente ao qual eu sou alérgica (evidentemente, essa informação havia sido passada para a nutricionista). A profissional preenche duas páginas com uma entrevista que faz com você. Ela pergunta: “É alérgica a algum alimento?” Resposta: “Sim, não posso comer abacaxi.” Na refeição seguinte já veio uma gelatina de abacaxi de sobremesa pra mim...

E os também já clássicos erros de medicação. A gente pergunta o que a técnica está trazendo pra você tomar, e ela responde com algo que não faz parte do seu repertório medicamentoso. Ao ser questionada, responde que está lá no prontuário. Você insiste, com muito jeitinho, que ela vá até lá só para confirmar, e ela não volta mais.

Finalmente, tive alta. Mas a saga continua.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Entrevista: Humberto Maturana e a importância do amor

O médico e biólogo propõe que o cultivo do amor seja um caminho para a realização humana e a coragem de se questionar, a única alternativa de quem ambiciona a paz.


Em 2000, Maturana e sua parceira, a professora Ximena Dávila, fundaram o Instituto Matriztico, em Santiago, no Chile. Em 2010, esse centro tornou-se a Escuela Matríztica Santiago, espaço que estimula a conversa e a reflexão sobre a natureza humana e as relações entre os homens. Eles estiveram recentemente no Brasil, participando de um workshop promovido pelo Caravanserai Eventos e pelo Instituto Pallas Athena, de São Paulo. Nesta entrevista, a dupla fala sobre amor, dor e reflexão. E nos convida à prática da reflexão como caminho para um mundo melhor.

O que significa colocar o amor como um fundamento biológico do ser humano?


Humberto Maturana: O ser humano não vive só. A história da humanidade mostra que o amor está sempre associado à sobrevivência. Sobrevive na cooperação. Se a mãe não acolhe o bebê, ele perece. É o acolhimento que permite a existência. Numa de suas parábolas, Jesus fala do camponês lançando sementes ao solo. Algumas caem nas pedras e são comidas pelas aves, outras caem num solo árido e resistem por pouco tempo. Mas há aquelas que encontram boa terra e crescem vigorosas. Assim também nós precisamos de um solo acolhedor para nos desenvolver. Nosso solo acolhedor é o amor.

Como a senhora, uma cientista, pode definir o amor?

Ximena Dávila: Esse não é um fenômeno eventual, mas uma condição básica e cotidiana que define as relações entre os humanos. Amar é uma atitude em que se aceita o outro de forma incondicional e não se exige ou se espera nada como recompensa. Amar implica ocupar-se do bem-estar do outro e do meio ambiente. Em vez de oferecer instruções do que e como fazer, amar é respeitar o espaço do outro para que ele exista em plenitude.

HM: O amor é a emoção fundamental que tornou possível a história da humanidade. Ele determina as condutas humanas, que, por sua vez, tecem o convívio social, entendendo aqui emoção não como um sentimento, mas como formas de relacionamento. O amor nos dá a possibilidade de compartilhar a vida e o prazer de viver experiências com outras pessoas. Essa dinâmica relacional está na origem da vida humana e determinou o surgimento da linguagem, responsável pelos laços de comunicação e que inclui ações, emoções e sentimentos.

Na essência, todos nós somos criaturas amorosas?


HM: Todas as nossas condutas, mesmo aquelas que chamamos de racionais, dão-se sob o domínio básico de uma emoção, o amor. Não o amor místico, transcendental ou divino, e também não uma virtude especial de alguns, mas um tipo de relação em que todos se mantêm fiéis a si mesmos. Amar não é um substantivo, é um verbo, uma dinâmica relacional espontânea.

XD: Todos nós nascemos amorosos, mas vivemos em um momento histórico em que predominam relações de dominação, sentimentos agressivos, arrogância e competição, que se contrapõem aos fundamentos amorosos. Isso é o oposto do amar, pois amar é um respeito pela individualidade. Amar nos permite ser vistos, ter presença, ser escutados, enfim, existir como pessoa. É um tipo de comportamento em que não há expectativas e preconceitos – impera a aceitação do outro da forma como ele existe. O que estamos propondo é apenas recuperar em nós o que é constitutivo do nosso ser.

Para vocês, o mundo é, de fato, um espaço acolhedor?


HM:
O mundo sempre foi maravilhosamente acolhedor. Se assim não fosse, a história do ser humano não teria acontecido. Um ser só sobrevive em um entorno que o receba. Caso contrário, torna-se negativo e agressivo e não resiste. Apesar de vivermos um momento de negação do amor, só sobrevivemos porque essa emoção persiste nos vínculos que definem a vida em sociedade. É no amor que alcançamos o bem-estar e realizamos nossa condição humana.

Normalmente entendemos o amor como uma relação idealizada, perfeita. Isso é um equívoco?


HM: Perfeição implica expectativa. Isso não é amor para nós. O amor verdadeiro não exige nada, não pede retribuição. Quando surge a exigência, desaparece o amor. Ele não admite críticas, pois elas significam a imposição dos desejos de alguém sobre outra pessoa e isso dissipa o prazer de estar junto.

Se o amor é um fundamento do ser, como surge o desamor?

XD: O útero é um espaço de boa terra de onde “brotamos” convencidos de que o mundo nos receberá e cuidará de nós com ternura e respeito. Se assim for, conseguimos conservar a configuração emocional própria de seres amorosos. Entretanto, o nosso estilo de vida pode nos conduzir a um processo de autodepreciação, uma armadilha criada pelos padrões da cultura contemporânea. Para rebater esse mal-estar consigo mesmo, um drible são as conversas reflexivas – um exercício de autoconhecimento em que revelamos o que vivemos e como vivemos. Refletir não é pensar, mas agir de modo a perceber o sentido da própria existência e realizar nossa natureza amorosa.

Alguém que nasceu no desamor pode se reestruturar?

XD: Sempre existe espaço para transformação. Num clima de desamor, esse processo traz sofrimento. Mas a dor tem sua função: ela faz refletir e nos permite examinar nossas atitudes conosco e com a sociedade e decidir se queremos continuar naquela direção ou não. Somos continuamente mutantes. Podemos gerar mundos distintos todos os dias e isso traz esperança. Nascemos com o potencial de cultivar espaços de bem-estar, capazes de ampliar a amorosidade que vivenciamos no útero materno. E, como seres amorosos, temos a capacidade de ressurgir do sofrimento.

HM: Cada qual tem de assumir o próprio processo de mudança. Não se pode querer transformar o outro. Isso não é um ato de amor verdadeiro – quando tentamos mudar o próximo, estamos visando nossos próprios interesses e valores. A transformação deve ser feita por cada um de nós e para o nosso próprio bem. Se alguém não merece seu amor, não tente interferir na sua conduta. Afaste-se. Você tem liberdade de escolher com quem quer estar.

Qual o sentido do sofrimento?

HM: A dor nos faz perguntar. Apesar de difícil, é uma oportunidade única de transformação, assim como a curiosidade, que não nos permite submissão aos padrões externos. Quando tropeçamos dói o pé. Isso faz pensar sobre o modo de andar, a atenção ao caminhar, os desafios do trajeto. A dor da alma também ensina. Se alguém me repudia, tenho de perguntar o que estou fazendo para que isso aconteça. Investigar é oportunidade para crescer.

E onde nasce a dor?

XD: Como seres criativos, precisamos de um ambiente que nos permita a expressão plena da nossa natureza amorosa. A dor surge de experiências decorrentes do desamor em que a pessoa aceita e, portanto, acredita que merece não ser amada. Para superar esse sentimento, ela tem de se reconectar profundamente com essa natureza. E reconhecer que as expectativas colocadas sobre ela são demandas arbitrárias próprias de uma cultura centrada no resultado e na competição. Enxergar tudo isso muitas vezes depende de um estímulo externo, uma conversa desprovida de expectativas e julgamentos.

Viver é um esforço, aqui entendido como sofrimento?

XD:
O único caminho possível é a reflexão. Mas refletir não pode ser encarado como um esforço. Se há esforço significa que estamos procurando soluções. Isso não é reflexão. Refletir é conseguir recuar da cena para enxergar – e entender – a situação por outro prisma e encontrar uma nova direção a seguir.

Nesse sentido, o que significa refletir para a senhora?


XD: A pergunta primordial é: gosto de viver o que estou vivendo? Quando me disponho a essa pergunta, já estou revendo minhas posturas, fora do âmbito da dor e da angústia. A conquista da consciência passa por outras perguntas: será que o meu desejo é uma imposição do outro? Será que eu quero o que imagino que quero? A reflexão guarda o desejo de se transportar para uma realidade melhor. O processo pode ser desconfortável. E é justamente quando o bem-estar desaparece que surge a oportunidade de encarar as emoções que nos povoam.

Fonte: http://casa.abril.com.br/materia/entrevista-humberto-maturana-e-a-importancia-do-amor

terça-feira, 8 de março de 2016

Pesquisa mostra diversidade do uso das redes sociais pelo mundo

Na Índia, internautas têm perfis diferentes para se relacionar com pessoas de outra casta



RIO — O Facebook é uma comunidade global com 1,6 bilhão de pessoas, o Twitter conta com 320 milhões de usuários, mas o uso da rede varia de acordo com o ambiente cultural. Essa é a conclusão do maior estudo antropológico já realizado sobre as redes sociais. Ao longo de 15 meses, uma equipe de pesquisadores da Universidade College London observou, in loco, como habitantes de pequenas comunidades em oito países lidam com a tecnologia e se relacionam online. O resultado traz histórias surpreendentes, como a de um povoado no Sudeste da Turquia, país majoritariamente muçulmano, onde jovens recorrem a aplicativos de mensagens para conversar com pessoas do sexo oposto; ou a na Índia, uma sociedade de castas na qual internautas criam dois perfis distintos: um para se relacionar com pessoas do mesmo grupo social e outro, mais abrangente.


— Nós vemos afirmações generalizantes, de como o Twitter mudou a política, o Facebook mudou o nosso entendimento sobre amizade, mas será que isso funciona da mesma maneira para um profissional de TI na Índia ou um operário na China? Nós temos a responsabilidade de estudar — explica o coordenador do estudo, Daniel Miller. — As discussões sobre redes sociais são focadas em dados estatísticos, com análise de mensagens publicadas, mas é preciso conhecer as pessoas que fazem uso dessas redes.


Foram estudadas localidades no Brasil, na Turquia, em Trinidad e Tobago, no Chile, na Itália, Índia e China. A equipe foi formada por nove pesquisadores. Cada um viveu por 15 meses em uma comunidade. Com análises nesses países, foi possível comparar as diferentes formas de apropriação das redes sociais. O estudo resultou em 11 livros (três já estão disponíveis e o resto será publicado aos poucos ao longo deste ano), centenas de vídeos e no curso “Por que postamos”, que será ministrado na universidade, mas também tem turmas gratuitas pela internet.





REFORÇO NAS RELAÇÕES LOCAIS


De todos os achados, os pesquisadores destacaram 15 que serão debatidos no curso, sendo que alguns rebatem crenças difundidas, como a de que as redes sociais tornariam as pessoas mais individualistas, com a perda de valores tradicionais, mas não foi isso que os antropólogos observaram. Na comunidade estudada no Chile, por exemplo, os homens trabalham por longas jornadas em minas, longe de casa, e as redes sociais ajudam a família e a comunidade a se manterem unidas. No Brasil, o local do estudo foi uma pequena comunidade na Bahia, e o antropólogo Juliano Spyer, doutorando na Universidade College London, constatou o caráter socializador das redes com membros de igrejas evangélicas que se tornam amigos de seguidores do candomblé pelo Facebook, apesar de encontros pessoais serem recriminados socialmente.


— Conheci uma jovem de família evangélica que, no contexto da vila, em ocasião nenhuma conseguiria manter vínculo de amizade com uma pessoa do candomblé — observa Spyer. — Isso só foi possível porque ela conseguiu, usando o Facebook, gerir essas duas relações: manteve o vínculo com a família e com a igreja, que ela preza muito, e ao mesmo tempo começou a se relacionar com pessoas de outra religião.


Também é comum ouvir que as redes sociais acabam com a privacidade. Talvez isso seja verdade para as camadas médias e altas das sociedades ocidentais, mas numa comunidade industrial na China, onde os habitantes vivem em dormitórios compartilhados com outros trabalhadores, as redes sociais são dos poucos locais privados. Na Turquia, onde as relações entre homens e mulheres podem ser mal vistas, jovens recorrem a programas de mensagens para manter romances longe dos olhares da comunidade.


Outra constatação dos pesquisadores foi que, em determinadas situações, as redes sociais se transformam em espaços de aprendizagem, diferente da visão de críticos, que consideram que elas prejudicam os estudos por tirarem a atenção dos alunos. Na comunidade estudada no Brasil, jovens recorrem a conteúdos disponíveis nas redes para se informar. E o próprio ato de escrever mensagens para amigos é uma forma de conhecimento.


— A evidência que eu trago da pesquisa é diferente: esses meninos e meninas leem e escrevem 24 horas por dia, trocando mensagens uns com os outros, e isso é um ganho de conhecimento sem precedentes naquela comunidade — diz Spyer. — E existe a preocupação de escrever corretamente, para não virar alvo de piadas. Então eles usam os corretores ortográficos ou recorrem ao Google para saber se uma palavra está certa.


A reprimenda social, aliás, tem presença coercitiva nas redes. Em todas as comunidades pesquisadas, os antropólogos perceberam que, em redes públicas, como o Facebook e o Twitter, as pessoas tendem a ser mais conservadoras. E nem é por causa da vigilância estatal, forte em países como China e Turquia, mas para não serem julgadas pela família e comunidade. Isso vai de encontro à visão do Twitter observada em movimentos no Oriente Médio e na África.


— Na Índia, as castas têm papel central nas comunidades. Nós encontramos relatos de jovens que foram para a universidade e, lá, se relacionam com pessoas de outras castas. Mas como a mistura com outros grupos é mal vista, eles criam dois perfis distintos nas redes sociais: um para a vila e outro para os colegas de classe — conta Miller, coordenador do estudo.




IGUALDADE ON-LINE, DESIGUALDADE OFFLINE



E a visão de que a internet e as redes sociais são promotoras da igualdade, por permitirem a democratização do acesso aos conteúdos, cai por terra na análise dos antropólogos. Os benefícios para a população de baixa renda são inegáveis, como o acesso ao trabalho e facilitação da comunicação, mas elas não alteraram a exclusão, a segregação social e a opressão offline. No Brasil, por exemplo, funcionários podem ter os mesmos smartphones que seus empregadores, mas isso não faz com que se tornem amigos ou se adicionem em redes sociais.


— Existem estudos dizendo que as redes sociais estão criando igualdade. On-line, talvez. As pessoas estão tendo acesso a smartphones, e isso é incrível, mas nós percebemos que isso não necessariamente causa impacto nas relações entre as pessoas offline — diz Miller. — Então, o que nós aprendemos é que não é possível dizer uma coisa sobre as redes sociais e assumir que isso seja verdade para todas as pessoas. Isso não faz sentido. O que nós temos é a diversidade em todas as partes do mundo.




Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/pesquisa-mostra-diversidade-do-uso-das-redes-sociais-pelo-mundo