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sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Morrendo como objeto

Ela diz tudo o que eu acredito!

Obrigada, Eliane Brum.


O sistema médico-hospitalar faz de nós violentados: em vez de viver o luto, temos que lidar com o trauma

Somos seres que morrem, isso não podemos evitar. Somos seres que perdem aqueles que amam, e isso também não podemos evitar. Mas há algo aterrador que persiste, e isso podemos evitar. E, mais do que evitar, combater. É preciso que os mortos por causas não violentas cessem de morrer violentamente dentro dos hospitais.

Aqueles que amamos se tornam vítimas de violência no espaço onde deveria existir cuidado. E nós, que os perdemos, também nos tornamos vítimas. Quando tudo acaba, não somos apenas pessoas que precisam elaborar o luto de algo doloroso, mas natural. O sistema médico-hospitalar faz de nós violentados. Não há apenas luto, mas trauma. E é preciso que comecem a responder por isso – ou a rotina de violências não cessará.

Escrevo sobre o morrer e sobre a necessidade de recusar a “obstinação terapêutica” há quase dez anos. Em 2008, acompanhei o cotidiano de uma enfermaria de cuidados paliativos por quatro meses, para contar da morte com dignidade, a partir da ideia de que quando não se pode curar, ainda se pode cuidar. Neste percurso, testemunhei o morrer de várias pessoas, cada uma à sua maneira, vivendo até o fim a sua singularidade. A morte como parte da vida, não como seu contrário.

Morrer com dignidade é morrer da forma que se escolheu morrer quando o fim se tornou inevitável. É escolher até onde os médicos podem ir na tentativa de prolongar uma vida que já não é vida, é escolher se quer morrer numa cama de hospital ou em casa, é escolher na companhia de quem se quer estar quando chegar a hora de partir.


Como a maioria de nós não sabe o que vai provocar sua morte, nem quando, existe um instrumento chamado de “Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)”. Particularmente, prefiro outro nome, “Testamento Vital”, porque é de vida que se trata. Mas apesar do nome burocrático, hermético para a maioria, este documento pode ser até mesmo escrito a mão. Nele, determinamos previamente nosso desejo, assim como os limites à equipe de saúde que nos atenderá, caso não estejamos em condições de expressar nossas escolhas quando o fim chegar. Caberá a nossos familiares levar esse documento à equipe de saúde e garantir que essa vontade seja cumprida. Ou, se nenhuma vontade foi expressa, escolher o que nos cabe quando já não for possível evitar a morte. Porque são eles que nos conhecem melhor – e porque possivelmente nos amam.

É preciso lembrar que o fim de uma vida é ainda vida – e não morte. Para respeitar a vida, é preciso respeitar aquele que vive. Só há respeito quando há reconhecimento de que ali há um sujeito. No momento em que o corpo se torna objeto, o sujeito é sujeitado. E o que é apresentado como cuidado vira tortura.

Comprovei da forma mais dura que, com exceção de alguns pequenos enclaves de resistência, morrer com dignidade é uma ficção no sistema médico-hospitalar brasileiro. No momento em que se entra num hospital e a morte se desenha como desfecho, aqueles que amamos deixam de pertencer a si mesmos. É uma espécie de sequestro, mas sem resgate possível.

No início de 2016, perdi um parente querido. Numa noite, logo após um dia particularmente feliz, um aneurisma em sua aorta rompeu-se. Depois de uma longa cirurgia, as possibilidades de recuperação eram escassas. Após mais de uma semana na UTI, em que ele não despertou nenhuma vez, complicações mostraram que não havia chance. Era preciso deixá-lo partir. Mas ainda assim ele seguia entubado, continuava sendo espetado por agulhas e manipulado de várias maneiras. Havia se tornado um objeto de intervenção. Quando manifestávamos nossa preocupação, a resposta era: “Não se preocupem, ele não sente nada”.

Receber a notícia da perda de alguém tão estrutural na vida é devastador. Podemos tão pouco neste momento. E o que podemos é cuidar. Para nós, não é um corpo sedado que ali está. É uma pessoa na grandiosidade de seus últimos momentos de vida.


Pedi então para conversar com um dos médicos. Ele me atendeu incomodado por estar sendo chamado. Manifestei, educadamente, a nossa preocupação com a continuidade dos procedimentos invasivos e a nossa necessidade de compreender melhor o que estava acontecendo e quais seriam os próximos passos. Já que não era mais possível desejar que aquele que amávamos vivesse, queríamos assegurar sua dignidade na morte e nos despedir em paz.

Estávamos no corredor da UTI, em pé. O médico não concordara em conversar com os familiares numa sala reservada, apesar de existir um espaço para isso. Ele alterou a voz, quase gritando. Claramente, sentia-se afrontado porque, como “doutor”, qualquer pergunta soava como um questionamento a uma autoridade que acreditava incontestável. Disse-me que não havia nada a ser questionado, que eles sabiam o que fazer – e estavam fazendo.

Ao ouvir a voz alterada do médico, o filho do homem que morria se postou ao meu lado. Ele, que perdia tanto, disse ao médico com toda a calma que não era aceitável ser grosseiro quando já sofríamos tanto. E reiterou que precisávamos compreender melhor o momento e os próximos passos para fazer as melhores escolhas. Depois de mais alguns minutos de rispidez, o médico afastou-se sem nos dar qualquer resposta. Estávamos num dos templos do sistema hospitalar brasileiro.

Naquele momento, além da dor da perda, já somava-se uma outra. Havíamos sido agredidos quando estávamos tão frágeis. Em vez de acolhimento, abuso. Nos dirigimos então à recepção da UTI para perguntar se havia um setor de cuidados paliativos. Estávamos confusos, sem informação. Nossa esperança era que alguém com um conceito mais humanizado sobre o morrer pudesse intervir e conseguisse responder a nossos questionamentos, assim como assegurar os direitos de quem morria. O recepcionista da UTI disse que iria pesquisar e, depois de alguns minutos, apareceu com um telefone num pedaço de papel. Era um domingo. Passei a manhã ligando e só encontrava uma gravação de secretária eletrônica. Perguntei se havia outra maneira de contatar o setor, o recepcionista me deu um celular de emergência da suposta equipe. Outra secretária eletrônica. Deixei recado. Nunca recebemos resposta.

Da sala de espera da UTI comecei a buscar orientação com médicos paliativistas que eu conhecia, trocando mensagens privadas nas redes sociais. Estes me escutaram e me orientaram pelo Twitter. Uma médica amiga foi ao hospital e entrou na UTI como visita para poder nos explicar o que estava acontecendo e o que poderíamos exigir que fosse diferente, a partir de nossa escolha de evitar procedimentos invasivos e desnecessários e poder alcançar a melhor despedida possível dentro das circunstâncias.

É importante sublinhar: foi preciso infiltrar uma médica para ter informações e tentar fazer escolhas que respeitassem aquele que morria. Num momento tão limite da vida de todos, foi necessário uma “clandestina” para tentar proteger quem partia. E o que era proteger e cuidar quando já não era possível salvar? Tratá-lo como uma pessoa, um ser com história – e não como um objeto, um invólucro de carne “que nada sentia”.

De repente, ele era um objeto de acesso controlado, protegido de nós, que o amávamos.


Pouco antes da morte, soubemos por uma enfermeira que há pelo menos uma semana já era claro que este seria o desfecho. Mas nada disso nos foi contado. Possivelmente não era necessário que morresse numa UTI, possivelmente não havia sentido que permanecesse numa UTI. Possivelmente poderíamos ter nos despedido do nosso jeito. Certamente poderíamos ter escolhido bem mais.

Mas no instante em que ele entrou no hospital, numa situação de emergência, perdemos o acesso a quem amávamos. Tínhamos apenas o acesso controlado ao seu corpo “que nada sentia”. De repente, ele era um objeto sob vigilância, protegido de nós, que com ele compartilhávamos a vida e a história.

Seis meses depois, em agosto, perdi meu pai. Havíamos combinado de assistir juntos à abertura da Olimpíada. Como morávamos em estados diferentes, eu ainda estava no caminho quando ele passou mal. Foi levado ao hospital de ambulância. E lá sofreu um AVC e entrou em coma. Meu pai tinha 86 anos e já não havia chance para ele.

Quando cheguei com parte da família ao hospital, depois da pior viagem de nossas vidas, ele estava na UTI. As visitas eram permitidas apenas em três horários. Como só conseguimos chegar de madrugada, convenci a enfermeira a me deixar entrar. Ao perceber que ela ficaria ao meu lado, pedi que saísse porque eu queria privacidade. Antes de sair, ela fez um comentário: “Fazia muito tempo que você não via o seu pai?”.

Meu entendimento era que meu pai morria de velho. Se não morremos por tiro, acidente ou catástrofe, alguma doença nos mata em nossa progressiva corrosão física. No caso do meu pai, poderia ter sido o coração, que tantos sobressaltos lhe provocou durante a vida. Mas foi um AVC. Assim, apesar da dor sem medida que eu sentia, me era claro que a morte era inevitável. Qualquer tentativa de esticar sua vida, na sua idade e naquelas circunstâncias, seria excessiva. Na melhor das hipóteses, ele teria uma vida sem vida, o que meu pai não gostaria nem merecia. Me era claro – e era para todos nós – que tudo o que podíamos fazer naquele momento era assegurar a ele uma morte digna e garantir a nossa despedida.

Como ficar numa sala de espera enquanto quem amamos morre sozinho, entubado e cheio de fios?


Ao contrário dos principais hospitais do país, a UTI do centro de saúde em que meu pai for internado não permitia a permanência dos familiares junto à pessoa doente ou em processo de morte. Segundo o Estatuto do Idoso, ele teria direito a um acompanhante permanente. Mas ali a UTI suspendia a lei. Era preciso esperar pelos horários de visita. Mas como ficar numa sala de espera enquanto alguém que amamos morre sozinho, entubado e cheio de fios a alguns metros dali? E por quê?

Nós queríamos estar com ele. Queríamos fazer carinho no seu cabelo enrolado e tão branco. Queríamos dar beijo na testa e também nas bochechas. Queríamos afagar a sua mão. Queríamos ter certeza de que ele não estava passando frio. Queríamos contar histórias sobre ele. Queríamos dizer que o amávamos e que ele seguiria vivendo em nós.

“Ele não sente nada”, ouvi mais uma vez. Ainda que ele não sentisse, nós sentíamos.

Quando horas depois o médico declarou a “morte cerebral”, sabíamos que ele tinha partido. Mas o horário de visitas não tinha chegado. A despedida já não importava ao meu pai, mas importava a nós. Ele já não estava lá, mesmo que o coração ainda batesse. Mas nós precisávamos dessa despedida para poder seguir a vida sem ele. O que nos roubaram ao impedir que ficássemos com quem amávamos, ao reduzir meu pai a um corpo passível de visitação em horários determinados, jamais poderá ser devolvido.

Minha mãe queria estar com o homem com quem viveu 63 anos de um casamento de amor, mas o horário de visitas não tinha chegado. Na noite anterior ela tinha dormido aconchegada a ele, horas antes conversavam sobre o que comprariam na feira, e agora ela era impedida de tocá-lo. Me era difícil suportar a indignidade daquela situação, mas ver a minha mãe passar por essa violência me era insuportável. Ela nunca poderia ter sido impedida de ficar ao lado do meu pai, de mão com ele. Não há necessidade de manter uma pessoa numa condição irreversível em uma UTI. E não há sentido em manter alguém na UTI longe dos familiares.

Naquele momento, meu pai já estava morto, e eu sabia disso. Morte encefálica é morte. E ponto. Mas minha mãe ainda seguia aguardando o horário de visitas. Toquei a campainha para falar com a enfermeira. Disse a ela que meu pai estava morrendo e que precisávamos nos despedir. Que não poderíamos esperar o horário de visitas e que também não podia ser um de cada vez, que precisávamos estar com ele juntos.

Ela negou, dizendo que isso era contra as regras – ou contra o estatuto do hospital, não lembro o termo exato. Eu retruquei que nosso direito de estar com o meu pai no seu morrer estava acima das regras do hospital. A enfermeira chamou o médico de plantão. Havíamos nos tornado a família criadora de problemas. Já tínhamos inclusive ouvido mais uma pérola: “As famílias sempre têm dificuldades de aceitar mortes repentinas”. Era o que para essa profissional justificava a nossa impertinência de exigir direitos. O médico chegou. Disse a ele o mesmo que havia dito à enfermeira. Ele concordou com os argumentos e permitiu nossa entrada.



Uma mão asséptica descobria o corpo, uma mão trêmula voltava a cobri-lo

Nos reunimos todos em volta do meu pai. Ele já estava morto, mas fingimos que o coração batendo era vida. E nos despedimos. A enfermeira que antes tinha barrado nosso direito de nos despedir talvez não tenha suportado a interdição. Com a justificativa de medir os sinais vitais, arrancava o lençol dele, expondo o seu corpo. Minha mãe, de 81 anos, voltava a puxar o lençol para cobrir o homem que ela amava, o homem com quem criou uma família, o homem com quem dividiu a vida. A enfermeira voltava a tirar o lençol. Minha mãe o recolocava. Dois gestos em disputa, o impasse de uma época. A mão asséptica, pragmática, arrancando o lençol (e a humanidade) transformava meu pai num objeto. A mão trêmula, gasta de anos, voltando a cobri-lo com o lençol, devolvia a ele a humanidade e a história.

O direito de permanecer junto à pessoa querida, assim como o direito de se despedir, seguiu sendo negado às outras famílias que estavam na sala de espera. Parte delas, em vez de se juntarem a nós num movimento que seria mais potente porque coletivo, nos acusaram de “privilégio”. Era desesperador ouvir direito ser convertido em privilégio justamente por quem era violado num momento tão limite. Mas não havia tempo para argumentar. Era preciso cuidar agora do corpo do pai.

Por mais que a gente se prepare para perder, e eu me preparo há muitos anos, a morte é um buraco. Não há um dia sequer em que eu não sinta falta do olhar do meu pai. Sei que ele vive em mim, o reconheço na forma como eu escuto o mundo, no formato dos dedos dos meus pés. Meu sorriso é o dele. Na minha carne há palavras que foi ele quem disse, suas histórias correm no meu rio.

Estresse pré-traumático é a angústia produzida pela certeza de morrer como objeto

Mas há um buraco onde antes havia o olhar dele. Percebo que envelhecer e perder é também aprender a andar por aí com o corpo esburacado pelos olhares que a gente já não tem. Passamos a ser carregadores de ausências. E há que se abrir espaço-tempo para viver o luto, porque só assim a gente descobre como reencontrar a alegria mesmo com o corpo esburacado. E a alegria, a forma mais bonita de amor, é quase tudo.

Meu luto é fundo, mas sereno. A violência vivida, não. Ela me escava. E é com ela que me debato hoje. Perto de mim, aquele que perdeu o pai no início de 2016 nomeou o que ambos vivemos como “estresse pré-traumático”. Passamos a ficar em pânico com o que acontece com uma pessoa quando ela entra num hospital e, de imediato, é convertida num objeto. E num objeto sequestrado. Descobrimos que nada do que já deixamos escrito servirá para barrar a onipotência médica se o nosso processo de morrer acontecer dentro de uma instituição hospitalar. Que nosso corpo será virado e revirado por estranhos, espetado e penetrado por objetos, mesmo quando estivermos além da possibilidade de cura. Que só teremos informações pela metade e que estranhos escolherão por nós.

Descobrimos que tudo isso que somos numa vida nos será roubado no final. Não pela morte, mas por um sistema médico-hospitalar que reduz pessoas a objetos. Numa paródia com o inferno de Dante, a inscrição no portão dos hospitais poderia ser: “Deixai toda história, ó vós que entrais”. Nem morremos ainda e já somos reduzidos a um não ser.

Me preparei muito para cuidar de quem amava quando morresse. E não pude. Não consegui protegê-los. Não fui capaz de fazer valer nem os meus direitos nem os deles. Aceitar que morremos e que perdemos é duro, mas é preciso. É nossa condição de existir. Mas a impotência diante da violência e da violação de direitos é uma indignidade que não podemos seguir permitindo que aconteça.

É isso o que aquele que perdeu o pai primeiro descreve como estresse pré-traumático. Prometemos um ao outro impedir a redução a objeto, mas sabemos que fracassaremos. Porque fracassamos em proteger o pai dele e o meu de quem deveria cuidá-lo. Se nossa morte não for súbita, não conseguiremos voltar para casa para morrer entre os livros, com a nossa música, no espaço que lembra de nós, entre aqueles que conhecem a nossa história. O último ato da vida será o de virar coisa num hospital. E, assim, o estresse pré-traumático seria a expectativa dessa objetificação, como os prisioneiros que ouvem os gritos nos porões e sabem que sua vez irá chegar. A antecipação da tortura já é tortura.

A imagem do nosso trauma é a descrita pelo historiador Phillipe Ariès em seu livro O homem diante da morte: “A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem popular mais terrífica que o trespassado ou o esqueleto das retóricas macabras”. Pensávamos que podíamos escapar disso e cuidar da morte como parte da vida, mas a lógica do sistema nos esmagou. Lembro de uma mulher que entrevistei para uma das minhas reportagens sobre o morrer. Ao perceber o que fariam com seu marido, além da possibilidade de cura, ela e um filho fugiram com ele do hospital numa cena cinematográfica. Ela conseguiu encontrar um lugar em que ele pôde morrer em paz, mas ter de fugir para fazer isso revela o tamanho da distorção.


O uso da palavra “doutor” ecoa nossas piores distorções históricas

Naturalizamos essa lógica perversa em que se morre não como gente, mas como objeto. A assepsia do processo, os jalecos brancos, a linguagem que torna a maioria analfabetos, a informação que não é compartilhada, o poder da medicina sobre os corpos em nossa época histórica encobrem a perversão de um sistema em que bem no fim nossos direitos são suspensos. Se já não há história, não há sujeito. Se não há sujeito, não há direitos.

Não uso a palavra “doutor” para ninguém. Nem para médico, nem para advogado, delegado, procurador, juiz etc. O uso do “doutor”, no Brasil, ecoa nossas piores distorções históricas. E, sempre que evocado, volta a reeditá-las. Assim, escolho não usar como ato político. Mas em algum momento destes processos, me vi chamando médicos que violavam direitos de “doutor”. Percebi que queria agradá-los por duas razões: 1) a expectativa de que me tratassem com gentileza porque me sentia imensamente frágil; 2) o pavor de saber que eles tinham todo o poder sobre alguém que eu amava.

Ao fazer isso, eu assumia a posição de vítima. E esta posição, como é óbvio para qualquer um, tem um custo alto. Como a violência aparece travestida de cuidado, o que talvez seja a maior perversão do sistema, fica ainda mais difícil tratar violência como violência.

Percebo com clareza que a maioria dos profissionais de saúde não compreende que, a partir de um determinado momento, o que é apresentado como cuidado se torna tortura. Assim como o que é apresentado como zelo se torna excesso. Assim como não percebem que os corpos não lhes pertencem apenas porque ingressaram na instituição. E que, ao tomá-los, torna-se sequestro. Somos todos – e os profissionais de saúde também – filhos dessa época histórica. Por isso, quando questionados, os profissionais ofendem-se e sentem-se até mesmo injustiçados. Afinal, acostumaram-se a habitar um lugar idealizado e de enorme potência, o lugar de quem salva.

Esse estado de coisas, o funcionamento da instituição médico-hospitalar como espaço de absolutos, é naturalizado. Afinal, a medicina tem hoje o poder de decidir até mesmo quem é normal e quem não é – ou o que é normalidade. Ou, ainda, que a normalidade existe. O que somos não é mais algo complexo, cheio de camadas, mas um diagnóstico: depressivo, cardíaco, anoréxico, obeso etc. Quando esse poder de dizer o que uma vida humana é se une aos interesses da indústria farmacêutica, as chances de um olhar em que a pessoa não seja reduzida a um objeto se encolhem.

É preciso encontrar uma maneira de dar vários passos para fora e recuperar a capacidade do espanto. E assim poder enxergar o que acontece no espaço do hospital sem os véus encobridores da naturalização. Pegando o mais comum dos procedimentos, por exemplo. Uma simples injeção. Se não há justificativa, ela é não é cuidado. É tortura. Exatamente porque nem sempre é fácil identificar quando o cuidado se transforma em tortura, o questionamento se torna fundamental. E a escolha, ao final, só pode ser de quem morre ou de quem ama aquele que morre quando este já não pode escolher. O que para o profissional de saúde é digno, para aquele que morre pode não ser. Quem decide?

Se quisermos morrer como sujeitos, teremos que mudar a formação dos médicos nas universidades e botar limites na falta de limites

Abrir mão do poder absoluto sobre os corpos, porém, é algo difícil para grande parte dos médicos. Difícil por várias razões e, principalmente, porque significa aceitar a própria condição de impotência diante da morte. Assim, qualquer pergunta que questione esse poder, ainda que ela parta de uma pessoa fragilizada pela perda de alguém, se transforma numa ferida narcísica. Nesta época histórica, se quisermos morrer como sujeitos, teremos que mudar a formação dos médicos nas universidades. E botar limites na falta de limites.

Levei meses para compreender que me confrontava com duas situações inteiramente diversas. Uma natural, a da perda. A outra naturalizada, a da violência perpetrada pelo sistema médico-hospitalar. Uma é lidar com a condição humana de morrer. Com essa, podemos. A outra é lidar com a certeza de morrer como objeto. Com essa, não podemos. Uma é lidar com a dor da perda de quem amamos. Com essa, podemos. Outra é lidar com a violência de não poder assegurar o direito de uma morte digna a quem amamos. Com essa, não podemos. Uma é luto, outra é trauma. O luto se vive, o trauma precisa virar outra coisa para que a vida possa seguir. No meu caso, vira escrita. O luto – e a luta.


Num país em que o SUS está sendo atacado pelas forças do retrocesso, em que doenças como dengue e zika proliferam por falta de saneamento básico, em que a febre amarela ressurge no Sudeste, em que as pessoas morrem por falta de assistência, o debate sobre o direito de morrer com dignidade encontra pouco espaço. Mas é de vida que se trata. Se não sabemos morrer, jamais saberemos viver.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/23/opinion/1485169382_907896.html?id_externo_rsoc=whatsapp

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sobrevivendo às internações hospitalares 5

Hoje temos a participação mais que especial da querida amiga e irmã Ana Paula de Lisbôa

Ana Lisbôa 5 de agosto de 2016 06:27

Seguindo seus exemplos, como sempre, resolvi infartar também... Minhas experiências de CTI são inesquecíveis. Em um deles fiquei aguardando a medicação noturna que não chegava nunca... diante do meu quadro e com medo de irritar o corpo de enfermagem fiquei quieta observando um box a minha frente onde fecharam as cortinas e a única médica do plantão se esfalfava para salvar a criatura no leito escondifo pelas cortinas. Foi quando o estalo se deu!! Resolvi que iria gritar em plenos pulmões exigindo minha medicação!!!

Escândalo em andamento, os auxiliares de enfermagem afirmavam que já haviam me dado a medicação e eu aos berros dizia que não, que estavam mentindo... A doutora já totalmente descabelada saiu do box tendo feito o que podia pela paciente que lá estava, veio para meu leito disposta a defender sua equipe e eu disse para ela que calasse a boca porque eu havia visto o momento em que derrubaram meus comprimidos no chão que foi imediatamente varrido e que os remédio não tinham sido ministrados em mim porque estavam no lixo! A médica, acreditando estar resolvendo o problema mandou que trouxessem minha medicação novamente.

A enfermeira chegou com os comprimidos e eu perguntei para ela se todos estavam alí... ela disse que sim e eu disse que não. Ela afirmava que sim e eu dizia que ela mentia porque não estavam todos lá. A médica tomou ares de autoridade defendendo a equipe e engrossou comigo. Mandei que ela calasse a boca e que não defendesse assim pessoas que ela não conhecia e que agindo daquela forma ela jogaria os anos de estudo e seu diploma junto com meus remédios... no lixo. Só então fiz a pergunta que provaria à médica da certeza que eu tinha... Me virei para enfermeira e disse que ela estava mentindo porque se toda a medicação estivesse alí teria que estar também o meu rivotril em gotas! A enfermeira arregalou os olhos! Então concluí. O meu rivotril foi dado para aquela senhora que vocês deixaram desacordada naquele box de cortinas fechadas! Vocês trocaram a medicação e se a idosa falecer por isso e dou queixa na polícia e a doutoura vai perder o diploma!!!!


Corre, corre no CTI, recebi minha medicação completa e salvei a velha... Plantões noturnos em CTI parecem uma festa, muito barulho e pouca responsabilidade.

Solicitei a papelada para que eu assinasse a responsabilidade de sair do CTI e voltar para casa. A doutora com muito medo disse que eu não podia fazer aquilo porque estava programado um cateterismo para mim. Eu respondi que em meu coração ninguém naquela espelunca poria a mão. Assinei, meu marido veio me buscar e fui procurar outro hospital... Aff!

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Sobrevivendo às internações hospitalares 4

Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2014

Ao querido Doutor xxx e demais membros da Direção do Hospital xxx

Me dirijo aos senhores com a melhor intenção possível, na condição de paciente que já usufruiu dos serviços médico-hospitalares desta instituição e que pretende continuar usufruindo.

Já estive internada, em 2009, para a realização de uma alcoolização septal. Foi a primeira realizada pela equipe, neste Hospital, e o atendimento da equipe médica foi absolutamente espetacular.

O mesmo posso dizer da internação a que fui submetida na semana passada, com o atendimento impecável do Dr. xxx e da Dra. xxx.

A questão que venho apresentar é exatamente o enorme fosso que existe entre o atendimento que recebemos da equipe médica e o que recebemos da equipe de enfermagem.

Já em 2009, fiquei assustadíssima com o ambiente do CTI – Cárdio: extremamente barulhento, desrespeitoso e incompetente.

Depois que fui para o quarto, a insegurança foi grande, com enfermeiros/as e técnicos/as sem a menor habilidade para tratar dos pacientes.

Agora, em 2014, percebi um esforço extraordinário da equipe de enfermagem, da enfermaria, resultando uma melhora bastante positiva, embora ainda longe de ser ótima. Começa a ficar quase boa.

Quanto à equipe do CTI, continua o mesmo despropósito. Os enfermeiros-chefes só trabalham achincalhando os técnicos. É puro assédio moral!

O Sr. xxx e a Sra. xxx são completamente inadequados para estarem à frente de equipes sob seu comando. São desrespeitosos entre eles e com os pacientes – que, na maioria das vezes, se encontram em estado lastimável, e sem condição de reação -. Essas pessoas citadas colocam apelidos nos pacientes. O Sr. que se encontrava no box ao lado do meu, era chamado de brucutu, por ser um homem grande e gordo... mais tarde, já na enfermaria, esse senhor me disse que nunca ficou tão constrangido na vida, e que nunca havia se sentido tão desrespeitado.


Enfim, o CTI/Cárdio é um espaço em que se conversam sobre todos os assuntos pessoais, combinam-se churrascos e baladas, maridos, namorados, novelas e... esquecem literalmente os pacientes. Não há concentração mínima sobre os procedimentos que estão sendo realizados. O pouco que é feito, é feito no 'piloto automático' e sem foco algum.

Os pacientes que ficam nos boxes em frente ao balcão da enfermagem, ainda são vistos. Os que ficam nos boxes mais afastados, ficam horas sem atendimento. Nada do que é pedido é atendido, com um mínimo de dignidade com o paciente. Os que querem urinar ou evacuar têm vergonha de pedir, para não dar trabalho à equipe... Os que não conseguem pedir ficam horas sujos e ainda levam broncas, quando são 'descobertos'.

Entre o bate papo sempre alterado e, em tom de voz bem alto, vez por outra, algum desavisado toca o interfone, atrás de alguma informação. Dentro do CTI, as pessoas têm raiva de terem que atender a essas chamadas e respondem de maneira extremamente grosseira, debochando e xingando os infelizes que ousaram pedir alguma informação, através de um equipamento que está ali exatamente para isso.

A falta de atenção generalizada é assustadora, porque, mais de uma vez, me deram medicação que não era para mim e só consegui impedir de tomar porque estava o tempo todo lúcida e atenta. Sabemos que, num CTI, essa é uma situação atípica. A maior parte dos pacientes não têm condições de zelar por si mesmos.

Quando tive alta para enfermaria foi um alívio! Da mesma maneira que foi um pesadelo, quando eu soube que teria que voltar para o CTI, para realizar um exame mais sofisticado. Não deu outra. Quando cheguei para o tal exame, a enfermeira chefe estava brigando, berrando, xingando e achincalhando com as técnicas, que começaram a cuidar de mim, aos prantos e trêmulas e a enfermeira entrou no box em que eu me encontrava e continuou, aos berros a destratar as técnicas e ignorando a minha presença. É evidente que, num primeiro momento, os eletrodos foram colocados em mim de maneira totalmente equivocada, e tiveram que refazer a tarefa. E eu ainda tive que ir orientando a técnica, e lembrando a ela o que deveria fazer, porque ela estava desequilibrada por conta da discussão.

Sei que esse não é o clima esperado dentro de um CTI. Esse tipo de atitude deixa os pacientes mais estressados do que já estão.

A falta de cuidado começa no primeiro atendimento, para a colocação do soro. Fragilizada como qualquer pessoa na mesma situação que eu, comecei a achar que a culpa era minha, afinal, eu é que tenho fragilidade capilar... e isso já é motivo de deboche e de impaciência.

É muito interessante como a gente se sente acuada diante do aparato médico-hospitalar. Parece que aquilo tudo vai poder nos engolir a qualquer momento, principalmente se não tivermos um bom comportamento...

A questão do bom comportamento fica logo clara para quem chega, só em ouvir os comentários do pessoal da enfermagem a respeito dos pacientes. Logo, logo a gente percebe que o melhor é ficar bem comportadinha...

A atitude pouco adequada de alguns funcionários, ora dando gargalhadas, ora brigando entre si por causa de horários e ‘quem vai cobrir quem, no dia tal’, alguns se xingando, é o retrato rotineiro dentro do CTI.


Por que toda a equipe é nervosa e estressada? Por que as pessoas não são mais calmas, e falam mais baixo?

Os médicos plantonistas, coitados, são ‘engolidos’ pelo clima e parecem até ter medo de ‘exigirem’ um mínimo de educação e comportamento adequado. Fico triste, porque me pareceram todos ainda estudantes e, é lamentável, que eles encarem esse ambiente como sendo ‘normal’ e não façam nada para modificá-lo. Aliás, pelo clima de fofoca reinante, eles devem ter medo mesmo de serem ‘queimados’ pelos chefes da enfermagem.

Presenciei mais uma cena grotesca quando, no sábado à noite, apareceu o médico plantonista da emergência, procurando o plantonista do CTI, porque ele queria tirar uma dúvida com o colega, sobre uma pessoa que ele estava atendendo lá na emergência. Como o plantonista do CTI não se encontrava no local, ele deixou um recado com o Sr. xxx para que, por favor, assim que o colega voltasse, fosse pedido que entrasse em contato, porque ele estava precisando de ajuda. O rapaz mal virou as costas e o enfermeiro diz: “É ruim que vou dar recado... vai morrer esperando... quem manda não saber as coisas...”

E é nesse clima de total descompromisso com o atendimento dos pacientes que segue a rotina do CTI/Cárdio.

Cheguei ao quarto, com uma técnica da UTI e não havia ninguém da enfermagem do andar para me receber no quarto. Me ajeitei como pude e, mais de uma hora depois, é que apareceu a enfermeira para me receber. Por sinal, muito simpática.

Como no CTI, é lógico que mais de uma vez a medicação veio errada e eu tive que intervir.

Concluo que é absolutamente necessário que o paciente esteja lúcido e atento 24h por dia. Não posso imaginar o que pode estar ocorrendo agora com as pessoas que estão inconscientes, ou tão-somente, grogues, por conta dos medicamentos.

Caros doutores, em hipótese alguma quero magoar ou ofender as pessoas envolvidas, mas senti-me da obrigação de relatar para vocês a quantas andam os procedimentos internos do Hospital. Fiquei bastante assustada e insegura com a perspectiva de ter que retornar em outro momento, o que é bastante provável, dada a minha condição de saúde.

Creio que um departamento de pessoal, que promova cursos de capacitação/atualização permanente para a equipe dentre outras coisas, pode ser um bom caminho. É extremamente importante que as prescrições sejam feitas de maneira claríssima pelos médicos! O sistema de comunicação interno pode e deve ser aperfeiçoado, como, por exemplo, quanto ao atendimento dos exames que são solicitados pelos médicos e que levam dias para serem realizados.

Um grande e fraterno abraço,

Sobrevivendo às internações hospitalares 3

Depois de ser submetida a uma alcoolização septal que, literalmente, me provocou um infarto em duas artérias (é o que eu acho...), para que eu pudesse ficar quase boa, evidentemente, fui para o CTI coronariano.


Eu, embora tranquila com relação ao sucesso do procedimento, e absolutamente confiante no meu médico e em toda a equipe, estava bastante fragilizada e preocupada, uma vez que pouquíssimas pessoas já haviam se submetido à tal alcoolização, nos termos em que o meu coração se apresentava. Não foi à toa que meu caso fez parte de vários estudos e apresentações em congressos de Medicina.

Meu médico já havia me avisado que quando a anestesia passasse, eu iria sentir um peso muito forte no peito, mas que era normal, era a sensação do infarto. Tudo correu como ele disse e estava lá do meu lado.

Já no CTI, havia uma TV em cada “baia” - continuo sem saber o motivo – na minha, estava passando um emocionante jogo de futebol, do São Paulo com a Ponte Preta, que, evidentemente, muito colaborou para a minha recuperação. Assisti até o final, quando entrou um rapaz da equipe de enfermagem e falou: “vou desligar, tá? Já são 23h e tá na hora de você descansar”... Concordei plenamente, afinal, eu não havia pedido para assistir coisa alguma, e já sabendo que era o momento em que eu deveria ficar mais atenta.

Às cinco da manhã, naquele velho esquema de tortura, para deixar os pacientes mais infelizes e tendo certeza de quem é que manda ali... chegou um dos rapazes da equipe de enfermagem para fazer aquela rotina toda, inclusive a minha higiene.

Ah, outra coisa bem legal, também, é aquele banho de gato que eles dão na gente e que quase nos mata de frio, porque a água está sempre mais ou menos morninha, e o CTI ou a UTI estão sempre com os aparelhos de ar condicionado no máximo, como tem que ser mesmo, por causa da aparelhagem.

E eis que ele se depara com as minhas pernas abertas, retas e amarradas, impossibilitando qualquer movimento, e com uma espécie de “tijolo” de espuma, fortemente contraído sobre cada virilha. É um procedimento normal, utilizado para ajudar a estancar o sangue da veia (femural) utilizada durante o procedimento e prevenir quanto a hemorragias. Quer dizer, é normal em uma das virilhas, mas eu estava naquela situação nas duas... E então, o técnico de enfermagem chega, levanta o meu lençol e dá um berro: “Gente!!! Ela está presa nas duas pernas! Nunca vi isso!!! Gente, vem ver!”, e imediatamente chegaram os colegas e todos ficaram escandalizados com a situação. Foi quando o rapaz me perguntou: “Querida, como é que você vai voltar a andar???”. Eu respondi, com muita humildade (que é essencial nesses casos), “Ué, achei que você é que iria me dizer...”


E assim correram os dias, naquele ambiente escandalosamente barulhento – por causa das pessoas que lá trabalham, que só se comunicam aos berros e às gargalhadas, de maneira bastante apropriada para um CTI.

Finalmente, fui para o quarto. Era uma enfermaria grande, com quatro camas, mas apenas uma estava ocupada por outra paciente. O maqueiro e um técnico me deixaram lá na cama.

Como sempre, não apareceu ninguém para me admitir. É um padrão de conduta, que é o/a enfermeiro/a responsável pelo andar, venha receber o 'novo' paciente. Mas, nada. Passados uns 30 minutos, a minha companheira de quarto se vira na cama e diz: “É ruim de aparecer alguém por aqui... a gente morre pendurada na campanhia e ninguém aparece...”.

Tive sorte, depois de uma hora e meia, mais ou menos, apareceu uma enfermeira - totalmente por acaso - que ficou muito espantada com a minha presença no quarto.
Tive azar, porque precisei que mudassem a veia que estava ligada ao soro e aos medicamentos, e mais uma vez, a tiradora de sangue fica muito aborrecida comigo, por causa das minhas péssimas veias (essa já um clássico).

E aí começa-se um novo momento, em que é fundamental cuidarmos de nós mesmos, caso queriramos nos manter vivos. Tudo o que pode dar errado, dará, caso você não esteja tomando conta de você mesmo.

Foi a alimentação que veio com ingrediente ao qual eu sou alérgica (evidentemente, essa informação havia sido passada para a nutricionista). A profissional preenche duas páginas com uma entrevista que faz com você. Ela pergunta: “É alérgica a algum alimento?” Resposta: “Sim, não posso comer abacaxi.” Na refeição seguinte já veio uma gelatina de abacaxi de sobremesa pra mim...

E os também já clássicos erros de medicação. A gente pergunta o que a técnica está trazendo pra você tomar, e ela responde com algo que não faz parte do seu repertório medicamentoso. Ao ser questionada, responde que está lá no prontuário. Você insiste, com muito jeitinho, que ela vá até lá só para confirmar, e ela não volta mais.

Finalmente, tive alta. Mas a saga continua.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Entrevista: Humberto Maturana e a importância do amor

O médico e biólogo propõe que o cultivo do amor seja um caminho para a realização humana e a coragem de se questionar, a única alternativa de quem ambiciona a paz.


Em 2000, Maturana e sua parceira, a professora Ximena Dávila, fundaram o Instituto Matriztico, em Santiago, no Chile. Em 2010, esse centro tornou-se a Escuela Matríztica Santiago, espaço que estimula a conversa e a reflexão sobre a natureza humana e as relações entre os homens. Eles estiveram recentemente no Brasil, participando de um workshop promovido pelo Caravanserai Eventos e pelo Instituto Pallas Athena, de São Paulo. Nesta entrevista, a dupla fala sobre amor, dor e reflexão. E nos convida à prática da reflexão como caminho para um mundo melhor.

O que significa colocar o amor como um fundamento biológico do ser humano?


Humberto Maturana: O ser humano não vive só. A história da humanidade mostra que o amor está sempre associado à sobrevivência. Sobrevive na cooperação. Se a mãe não acolhe o bebê, ele perece. É o acolhimento que permite a existência. Numa de suas parábolas, Jesus fala do camponês lançando sementes ao solo. Algumas caem nas pedras e são comidas pelas aves, outras caem num solo árido e resistem por pouco tempo. Mas há aquelas que encontram boa terra e crescem vigorosas. Assim também nós precisamos de um solo acolhedor para nos desenvolver. Nosso solo acolhedor é o amor.

Como a senhora, uma cientista, pode definir o amor?

Ximena Dávila: Esse não é um fenômeno eventual, mas uma condição básica e cotidiana que define as relações entre os humanos. Amar é uma atitude em que se aceita o outro de forma incondicional e não se exige ou se espera nada como recompensa. Amar implica ocupar-se do bem-estar do outro e do meio ambiente. Em vez de oferecer instruções do que e como fazer, amar é respeitar o espaço do outro para que ele exista em plenitude.

HM: O amor é a emoção fundamental que tornou possível a história da humanidade. Ele determina as condutas humanas, que, por sua vez, tecem o convívio social, entendendo aqui emoção não como um sentimento, mas como formas de relacionamento. O amor nos dá a possibilidade de compartilhar a vida e o prazer de viver experiências com outras pessoas. Essa dinâmica relacional está na origem da vida humana e determinou o surgimento da linguagem, responsável pelos laços de comunicação e que inclui ações, emoções e sentimentos.

Na essência, todos nós somos criaturas amorosas?


HM: Todas as nossas condutas, mesmo aquelas que chamamos de racionais, dão-se sob o domínio básico de uma emoção, o amor. Não o amor místico, transcendental ou divino, e também não uma virtude especial de alguns, mas um tipo de relação em que todos se mantêm fiéis a si mesmos. Amar não é um substantivo, é um verbo, uma dinâmica relacional espontânea.

XD: Todos nós nascemos amorosos, mas vivemos em um momento histórico em que predominam relações de dominação, sentimentos agressivos, arrogância e competição, que se contrapõem aos fundamentos amorosos. Isso é o oposto do amar, pois amar é um respeito pela individualidade. Amar nos permite ser vistos, ter presença, ser escutados, enfim, existir como pessoa. É um tipo de comportamento em que não há expectativas e preconceitos – impera a aceitação do outro da forma como ele existe. O que estamos propondo é apenas recuperar em nós o que é constitutivo do nosso ser.

Para vocês, o mundo é, de fato, um espaço acolhedor?


HM:
O mundo sempre foi maravilhosamente acolhedor. Se assim não fosse, a história do ser humano não teria acontecido. Um ser só sobrevive em um entorno que o receba. Caso contrário, torna-se negativo e agressivo e não resiste. Apesar de vivermos um momento de negação do amor, só sobrevivemos porque essa emoção persiste nos vínculos que definem a vida em sociedade. É no amor que alcançamos o bem-estar e realizamos nossa condição humana.

Normalmente entendemos o amor como uma relação idealizada, perfeita. Isso é um equívoco?


HM: Perfeição implica expectativa. Isso não é amor para nós. O amor verdadeiro não exige nada, não pede retribuição. Quando surge a exigência, desaparece o amor. Ele não admite críticas, pois elas significam a imposição dos desejos de alguém sobre outra pessoa e isso dissipa o prazer de estar junto.

Se o amor é um fundamento do ser, como surge o desamor?

XD: O útero é um espaço de boa terra de onde “brotamos” convencidos de que o mundo nos receberá e cuidará de nós com ternura e respeito. Se assim for, conseguimos conservar a configuração emocional própria de seres amorosos. Entretanto, o nosso estilo de vida pode nos conduzir a um processo de autodepreciação, uma armadilha criada pelos padrões da cultura contemporânea. Para rebater esse mal-estar consigo mesmo, um drible são as conversas reflexivas – um exercício de autoconhecimento em que revelamos o que vivemos e como vivemos. Refletir não é pensar, mas agir de modo a perceber o sentido da própria existência e realizar nossa natureza amorosa.

Alguém que nasceu no desamor pode se reestruturar?

XD: Sempre existe espaço para transformação. Num clima de desamor, esse processo traz sofrimento. Mas a dor tem sua função: ela faz refletir e nos permite examinar nossas atitudes conosco e com a sociedade e decidir se queremos continuar naquela direção ou não. Somos continuamente mutantes. Podemos gerar mundos distintos todos os dias e isso traz esperança. Nascemos com o potencial de cultivar espaços de bem-estar, capazes de ampliar a amorosidade que vivenciamos no útero materno. E, como seres amorosos, temos a capacidade de ressurgir do sofrimento.

HM: Cada qual tem de assumir o próprio processo de mudança. Não se pode querer transformar o outro. Isso não é um ato de amor verdadeiro – quando tentamos mudar o próximo, estamos visando nossos próprios interesses e valores. A transformação deve ser feita por cada um de nós e para o nosso próprio bem. Se alguém não merece seu amor, não tente interferir na sua conduta. Afaste-se. Você tem liberdade de escolher com quem quer estar.

Qual o sentido do sofrimento?

HM: A dor nos faz perguntar. Apesar de difícil, é uma oportunidade única de transformação, assim como a curiosidade, que não nos permite submissão aos padrões externos. Quando tropeçamos dói o pé. Isso faz pensar sobre o modo de andar, a atenção ao caminhar, os desafios do trajeto. A dor da alma também ensina. Se alguém me repudia, tenho de perguntar o que estou fazendo para que isso aconteça. Investigar é oportunidade para crescer.

E onde nasce a dor?

XD: Como seres criativos, precisamos de um ambiente que nos permita a expressão plena da nossa natureza amorosa. A dor surge de experiências decorrentes do desamor em que a pessoa aceita e, portanto, acredita que merece não ser amada. Para superar esse sentimento, ela tem de se reconectar profundamente com essa natureza. E reconhecer que as expectativas colocadas sobre ela são demandas arbitrárias próprias de uma cultura centrada no resultado e na competição. Enxergar tudo isso muitas vezes depende de um estímulo externo, uma conversa desprovida de expectativas e julgamentos.

Viver é um esforço, aqui entendido como sofrimento?

XD:
O único caminho possível é a reflexão. Mas refletir não pode ser encarado como um esforço. Se há esforço significa que estamos procurando soluções. Isso não é reflexão. Refletir é conseguir recuar da cena para enxergar – e entender – a situação por outro prisma e encontrar uma nova direção a seguir.

Nesse sentido, o que significa refletir para a senhora?


XD: A pergunta primordial é: gosto de viver o que estou vivendo? Quando me disponho a essa pergunta, já estou revendo minhas posturas, fora do âmbito da dor e da angústia. A conquista da consciência passa por outras perguntas: será que o meu desejo é uma imposição do outro? Será que eu quero o que imagino que quero? A reflexão guarda o desejo de se transportar para uma realidade melhor. O processo pode ser desconfortável. E é justamente quando o bem-estar desaparece que surge a oportunidade de encarar as emoções que nos povoam.

Fonte: http://casa.abril.com.br/materia/entrevista-humberto-maturana-e-a-importancia-do-amor

terça-feira, 8 de março de 2016

Pesquisa mostra diversidade do uso das redes sociais pelo mundo

Na Índia, internautas têm perfis diferentes para se relacionar com pessoas de outra casta



RIO — O Facebook é uma comunidade global com 1,6 bilhão de pessoas, o Twitter conta com 320 milhões de usuários, mas o uso da rede varia de acordo com o ambiente cultural. Essa é a conclusão do maior estudo antropológico já realizado sobre as redes sociais. Ao longo de 15 meses, uma equipe de pesquisadores da Universidade College London observou, in loco, como habitantes de pequenas comunidades em oito países lidam com a tecnologia e se relacionam online. O resultado traz histórias surpreendentes, como a de um povoado no Sudeste da Turquia, país majoritariamente muçulmano, onde jovens recorrem a aplicativos de mensagens para conversar com pessoas do sexo oposto; ou a na Índia, uma sociedade de castas na qual internautas criam dois perfis distintos: um para se relacionar com pessoas do mesmo grupo social e outro, mais abrangente.


— Nós vemos afirmações generalizantes, de como o Twitter mudou a política, o Facebook mudou o nosso entendimento sobre amizade, mas será que isso funciona da mesma maneira para um profissional de TI na Índia ou um operário na China? Nós temos a responsabilidade de estudar — explica o coordenador do estudo, Daniel Miller. — As discussões sobre redes sociais são focadas em dados estatísticos, com análise de mensagens publicadas, mas é preciso conhecer as pessoas que fazem uso dessas redes.


Foram estudadas localidades no Brasil, na Turquia, em Trinidad e Tobago, no Chile, na Itália, Índia e China. A equipe foi formada por nove pesquisadores. Cada um viveu por 15 meses em uma comunidade. Com análises nesses países, foi possível comparar as diferentes formas de apropriação das redes sociais. O estudo resultou em 11 livros (três já estão disponíveis e o resto será publicado aos poucos ao longo deste ano), centenas de vídeos e no curso “Por que postamos”, que será ministrado na universidade, mas também tem turmas gratuitas pela internet.





REFORÇO NAS RELAÇÕES LOCAIS


De todos os achados, os pesquisadores destacaram 15 que serão debatidos no curso, sendo que alguns rebatem crenças difundidas, como a de que as redes sociais tornariam as pessoas mais individualistas, com a perda de valores tradicionais, mas não foi isso que os antropólogos observaram. Na comunidade estudada no Chile, por exemplo, os homens trabalham por longas jornadas em minas, longe de casa, e as redes sociais ajudam a família e a comunidade a se manterem unidas. No Brasil, o local do estudo foi uma pequena comunidade na Bahia, e o antropólogo Juliano Spyer, doutorando na Universidade College London, constatou o caráter socializador das redes com membros de igrejas evangélicas que se tornam amigos de seguidores do candomblé pelo Facebook, apesar de encontros pessoais serem recriminados socialmente.


— Conheci uma jovem de família evangélica que, no contexto da vila, em ocasião nenhuma conseguiria manter vínculo de amizade com uma pessoa do candomblé — observa Spyer. — Isso só foi possível porque ela conseguiu, usando o Facebook, gerir essas duas relações: manteve o vínculo com a família e com a igreja, que ela preza muito, e ao mesmo tempo começou a se relacionar com pessoas de outra religião.


Também é comum ouvir que as redes sociais acabam com a privacidade. Talvez isso seja verdade para as camadas médias e altas das sociedades ocidentais, mas numa comunidade industrial na China, onde os habitantes vivem em dormitórios compartilhados com outros trabalhadores, as redes sociais são dos poucos locais privados. Na Turquia, onde as relações entre homens e mulheres podem ser mal vistas, jovens recorrem a programas de mensagens para manter romances longe dos olhares da comunidade.


Outra constatação dos pesquisadores foi que, em determinadas situações, as redes sociais se transformam em espaços de aprendizagem, diferente da visão de críticos, que consideram que elas prejudicam os estudos por tirarem a atenção dos alunos. Na comunidade estudada no Brasil, jovens recorrem a conteúdos disponíveis nas redes para se informar. E o próprio ato de escrever mensagens para amigos é uma forma de conhecimento.


— A evidência que eu trago da pesquisa é diferente: esses meninos e meninas leem e escrevem 24 horas por dia, trocando mensagens uns com os outros, e isso é um ganho de conhecimento sem precedentes naquela comunidade — diz Spyer. — E existe a preocupação de escrever corretamente, para não virar alvo de piadas. Então eles usam os corretores ortográficos ou recorrem ao Google para saber se uma palavra está certa.


A reprimenda social, aliás, tem presença coercitiva nas redes. Em todas as comunidades pesquisadas, os antropólogos perceberam que, em redes públicas, como o Facebook e o Twitter, as pessoas tendem a ser mais conservadoras. E nem é por causa da vigilância estatal, forte em países como China e Turquia, mas para não serem julgadas pela família e comunidade. Isso vai de encontro à visão do Twitter observada em movimentos no Oriente Médio e na África.


— Na Índia, as castas têm papel central nas comunidades. Nós encontramos relatos de jovens que foram para a universidade e, lá, se relacionam com pessoas de outras castas. Mas como a mistura com outros grupos é mal vista, eles criam dois perfis distintos nas redes sociais: um para a vila e outro para os colegas de classe — conta Miller, coordenador do estudo.




IGUALDADE ON-LINE, DESIGUALDADE OFFLINE



E a visão de que a internet e as redes sociais são promotoras da igualdade, por permitirem a democratização do acesso aos conteúdos, cai por terra na análise dos antropólogos. Os benefícios para a população de baixa renda são inegáveis, como o acesso ao trabalho e facilitação da comunicação, mas elas não alteraram a exclusão, a segregação social e a opressão offline. No Brasil, por exemplo, funcionários podem ter os mesmos smartphones que seus empregadores, mas isso não faz com que se tornem amigos ou se adicionem em redes sociais.


— Existem estudos dizendo que as redes sociais estão criando igualdade. On-line, talvez. As pessoas estão tendo acesso a smartphones, e isso é incrível, mas nós percebemos que isso não necessariamente causa impacto nas relações entre as pessoas offline — diz Miller. — Então, o que nós aprendemos é que não é possível dizer uma coisa sobre as redes sociais e assumir que isso seja verdade para todas as pessoas. Isso não faz sentido. O que nós temos é a diversidade em todas as partes do mundo.




Fonte: http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/pesquisa-mostra-diversidade-do-uso-das-redes-sociais-pelo-mundo